sábado, 3 de setembro de 2011

Maranatha (83)

X. EPÍLOGO

"Eis-nos chegados ao fim da construção da nossa cidade. Anunciado como projecto anual, já ultrapassei o prazo vai para nove meses. Apelo ao perdão dos leitores e do jornal. Junto, vai um agradecimento sincero.
Todas as crónicas foram revistas antes de serem publicadas; muitas, por duas e três vezes. Ao meu corrector-mor - por sinal, uma mulher - não sei como agradecer... ou sei, e já digo como.
Pedi-lhe que me fizesse este favor devido à seriedade desejada para o projecto. Não podia ser um conjunto de ideias pessoais, mas um efectivo trabalho filosófico, onde as opiniões não valem nada. A minha amiga forçou-me ao burilamento dos argumentos, retirando-lhes, muitas vezes, a má têmpera e o espírito provocatório, dando-me informação indispensável, obrigando-me a corrigir falácias e teimosias psicologistas.
É como na anedota: "Isto não é nada meu!". Não estou a fugir ao termo de responsabilidade - repare-se que voltei a usar a primeira pessoa verbal. Mas pensar é um acto intersubjectivo e eu quis, desde o início, fugir à parafernália doxológica típica das democracias.
A importância dos assuntos exigiu clareza. Procurei ser evidente, sei que nem sempre consegui. Não é fácil escrever filosofia de forma lisa num máximo de 1700 caracteres, incluindo espaços.
A cidade arquetípica é um símbolo universal, presente em todas as culturas. No caso ocidental, por certo que o exemplo mais forte está no Apocalipse: "Eu vi a cidade santa, a nova Jerusalém...".
"Maranatha" é um dos cânticos mais antigos dos cristãos; faz parte da Didaché (ano 100) e ainda se usa no Advento: "Preparai os caminhos do Senhor, Maranatha / Vão chegar os dias do Reino, Maranatha / Vem, Senhor Jesus, Maranatha".
Até lá!" - Mário Cabral in Diário Insular

sábado, 27 de agosto de 2011

Maranatha (82)

IX. CONCLUSÃO

6. TEOCRACIA

"A nossa maior tentação será fazer de Maranatha uma teocracia; e, de forma enviesada, de temer a acusação de o sermos, como Pedro ao negar Jesus.
O conceito de teocracia é um pau de dois bicos; e os regimes teocráticos conhecidos não abonam a favor deste nome. À boleia de Deus praticam-se atrocidades diabólicas. Aliás, evitaremos todas as ideologias, máscaras hipócritas para conveniências animalescas. É a Justiça, fundamentada na Verdade, que devemos procurar.
Numa teocracia, as leis civis são as leis de Deus. Tal nunca aconteceu na Cristandade, ao invés do apregoado. Cristianismo que fosse teocrático proibiria o trabalho ao Domingo e teria de obrigar ao culto neste dia, e a pelo menos uma confissão por ano; à contribuição para as despesas do culto, etc.
Cristo foi claríssimo neste ponto: a César o que é de César, a Deus o que é de Deus. O Reino de Deus não é deste mundo e, em grande parte, entra em choque com ele. A norma que preside à vida cristã - a santidade - não é a norma da organização social: poucos procuram ser santos e esta busca tem de ser feita com uma liberdade que seria coarctada caso se tratasse duma norma civil.
A teocracia nunca interessou à Cristandade. O caso actual da China exemplifica bem porquê; foi sempre assim, com reis e imperadores a procurar interferir na eleição de bispos e papas, e a usarem os valores cristãos para camuflar interesses de classe.
Dito isto, uma sociedade justa, boa, inteligente e culta não pode evitar esta evidência: que a organização humana deve seguir a lei natural. Ora, a lei natural obriga, metafisicamente, à Transcendência.
O ideal seria uma "teocracia livre", ao estilo da Santa Madre Igreja... que não é um país, mas um povo." - Mário Cabral in Diário Insular

terça-feira, 23 de agosto de 2011

A estupidez humana (2)


Mais um com as coordenadas daqui de casa no GPS.
Primeiro o Bob (aquiaqui e aqui) e depois a Freia (aqui e aqui). Ambos arranjaram donos que os merecem.
Ou anda perdido, ou foi despejado aqui na vizinhança. A segunda alternativa parece-me a mais provável, a avaliar pela ânsia como corre atrás de cada carro que vê passar. Se for o caso, espero mais uma vez que as pessoas em causa tenham uma furunculose rectal das antigas. Crónica de preferência. É o que merecem.
É pequenote, raçado de caniche, adulto, brincalhão e sociável com pessoas, cães e até gatos. Deve estar habituado a viver na rua, mesmo com os donos dos quais se perdeu ou que o abandonaram, pois não tenta entrar em casa.
Alguém conhece ou está interessado num amigo a sério?

sábado, 20 de agosto de 2011

A mulher de César, Direito, Ética e Bom-senso

Imbróglio na autarquia ainda tem lenha para arder

Os pareceres e decisões oficiais mais recentes - mesmo do Ministério Público - no entido de que não há incompatibilidade ou impedimento de a Câmara Municipal de Angra fazer compras a uma entidade propriedade do pai da Presidente da Câmara vieram dar razão a Andreia Cardoso. Está assim resolvida esta questão?
Uma empresa comercial é um "património cuja finalidade é o comércio na obtenção de lucro". Quais as formas de empresa comercial?: muitas; porque, como é evidente, não existe apenas o Código das Sociedades Comerciais. A tipologia da empresa comercial é dual: as que se organizam numa pessoa singular e as que se organizam numa pessoa colectiva. Estes dois modelos base depois são desenvolvidos em várias formas de empresariado. A lei, que não deve ser lida como quem lê um jornal, tem que obedecer a este esquema da ordem jurídica portuguesa. Por isso quando a lei refere no título (que é mero título e que tem valor meramente organizatório e às vezes ilustrativo) "sociedades" é uma infelicidade gramatical; mas quando o articulado da norma - e isto é que é a lei - refere "empresas" o termo é já certeiro e não engana. Além disso, se a lei permitisse a interpretação favorável à Presidente, que não permite mas vamos admitir que sim, seria inconstitucional: a lei pode fazer desvios ao princípio da igualdade desde que com justificação proporcional, razoável e adequada. Veja, por exemplo: se é razoável que numa fila a lei mande passar à frente uma mãe com um bebé ao colo; já não é razoável que a lei permitisse ao fulano A com totalidade duma empresa em nome individual de 80.000 euros e proibisse o fulano B que tem numa empresa uma quota de 5.000 euros.

Se não está resolvida a questão, parece justo, no entanto, imaginar que esta história chegou ao fim e que está salvaguardada a funcionalidade da Presidente da Câmara?Há uma atenção especial, exclusiva aliás, na questão legal. Mas este assunto é muito mais do que isso. Qualquer cidadão - que paga os seus impostos sempre com muito sacrifício - tem interesse que exista uma actuação saudável, isto é, transparente. Ora, em qualquer circunstância, é sempre sujeito a um juízo de desconfiança, a actuação de quem tenha o poder político-administrativo de comprar diretamente a familiar usando o dinheiro dos cidadãos. Até podia ter o aval da maior proeminência jurídica; essa relação de Pai-Filha é um forte combustível para a desconfiança. E nisto já não há salvação possível.

Podemos dizer que quem aconselhou a Presidente da Câmara a aconselhou mal?O mal é todo da Drª Andreia Cardoso: tinha obrigação, pela experiência política que possui, pela possibilidade de se rodear de bons conselheiros, de não ter enveredado por aquela via. Aliás, um (e não "o") senso comum aconselharia o político a proteger o pai. Aliás, pela comunicação social "constatamos" que a Srª Presidente continua com a intenção de seguir os procedimentos, quando tudo aconselharia a que, em nome da transparência, dissesse "independentemente da legalidade, não vou permitir mais confusões". Mas, enfim, como munícipes temos o que temos e não o que merecemos. - Arnaldo Ourique in Diário Insular

Maranatha (81)

IX. CONCLUSÃO

5. CENSURA

"Em Maranatha vai haver uma grande tentação para usar a censura.
Basta olhar o mundo actual: jornais de escândalos que destroem vidas de pessoas idóneas; programas de televisão obscenos; partidos políticos com projectos anti-sociais; modos de vida que são insultos contra a natureza; etc.
Compreendemos que uma comunidade conservadora sentirá o estômago às voltas, em contextos análogos.
Não se pense que não há censura nos dias que correm! Ann Coulter está proibida de entrar em várias universidades canadianas! Lembre-se o que aconteceu ao Papa; proibido de falar numa universidade chamada "de la Sapienza"!
Cada regime tem o seu estilo, mais ou menos explícito. Como sempre, é pior o estilo dissimulado ("Livrar dos sonsos!") do que o explícito, que se justifica.
Mas nós esforçar-nos-emos, por todos os meios, por evitar cair na tentação da censura.
O ponto está na adequada definição de liberdade, cujo sentido os modernos inverteram, como com muitos outros conceitos.
A liberdade está directamente relacionada com a razão; significa "deliberar". A razão busca um acordo universal - pelo que a liberdade é, antes de tudo, um libertar-se de instintos e de caprichos psicológicos.
Enfrentemos destemidos o tabu da "liberdade de expressão", contrapondo-a ao direito privado: uma coisa é falar de pessoas, outra falar de factos e ainda uma terceira diferente é falar de ideias.
Só medíocres se ocupam de falar mal de outras pessoas. Quase nunca há interesse político em assuntos do foro pessoal. Discutir factos implica apresentar provas (o boato é típico do falar das outras pessoas). A discussão filosófica séria não pode ser impedida.
Ser livre é ser imputável.
Não vale confundir autoridade com censura." - Mário Cabral in Diário Insular

terça-feira, 16 de agosto de 2011

sábado, 13 de agosto de 2011

Maranatha (80)

IX. CONCLUSÃO

4. PROVINCIANISMO E XENOFOBIA

"Considerando dois provincianismos, de um escaparemos à larga... mas poderemos cair no outro, ao dar o salto.
Por um lado, há o provincianismo do grupo G70 (Geração de 70), que tomou conta de Portugal desde os primórdios do liberalismo, e que agora se reproduz em rosa e escarlate: tudo o que é estrangeiro é bom, tudo o que é português é três vezes grosseiro.
Apetece cantar: "Lisboa, não sejas francesa, lá rá, lá, lá".
Deus nos livre de cair na tontaria dos descendentes de Isaú! De certa forma, Maranatha é fundada contra eles. Somos... "racés "!
Já o segundo pode muito bem infectar-nos, pouco a pouco.
Poderemos encher-nos de luxo, pensando: "Somos os únicos bons à face da Terra!". E por causa do nosso pavor ao relativismo, estaremos muito susceptíveis à xenofobia, com a qual ele se relaciona, a contrario.
A realidade desdobra-se numa espécie de variações musicais sobre um mesmo tema, haja em vista os tipos de plantas e de animais. À imagem da Natureza, existem muitas variantes de sociedades humanas.
Maranatha não é a única cidade que se encaminha para a excelência. Há que não confundir "o nosso estilo" com "o estilo único".
Verdade seja dita que esta tendência totalitarista é muito mais moderna do que conservadora, devido à preferência pela linguagem matemática e pelas ciências da natureza. Ao contrário, um antigo sabe que a liberdade passa por não haver um único caminho possível; não pode haver só um!
A Cristandade era um caldo de culturas vivas.
Combater os atalhos perversos jamais nos deve levar a supor que só há um caminho para o Céu: "No Céu há muitas moradas", disse Nosso Senhor.
Aliás, o Pentateuco, base das três religiões monoteístas, é claríssimo na condenação da xenofobia." - Mário Cabral in Diário Insular

domingo, 7 de agosto de 2011

Maranatha (79)

IX. CONCLUSÃO

3. O CONGELADOR

"E se a música tivesse parado na Idade Média, nos esplendores do gregoriano? "Una Furtiva Lagrima" não existiria.
E se diante da magnificência da escultura grega Miguel Ângelo se tivesse recusado a esculpir David?
E se depois de Leonardo não se imaginasse a poesia de Chagall?
Conclusão: tudo está por fazer. Há aqueles que gostam de afirmar que tudo já está feito - mas, por incrível que possa parecer são, com frequência, modernos. Olhando com atenção, faz sentido que assim pensem: primeiro, porque se viciam em combater, desfazer, desconstruir, destruir; depois, porque não acreditam na eternidade, ou seja, no futuro.
Ao contrário, para um conservador, o tesouro guardado no futuro vale tanto como o que já foi concretizado. Esperemos que em Maranatha não se confunda "conservador" e "congelador". Conservar as raízes serve apenas para procurar florescer bem para o alto, no azul das aves.
O congelador é um bom exemplo da excelência técnica moderna, contra a qual não teremos nada, por princípio. Quando uma alma contemplativa pensa em retirar-se do bulício das cidades contemporâneas, a custo imagina a sua cabana sem electricidade, por causa do frigorífico.
Desde sempre os homens procuraram o que está para além do horizonte. O velho do Restelo não é conservador... é velho. Ser moderno não é ser novo, que até o iluminismo é chão que já deu uvas. Em Maranatha vamos embarcar com o velho do Restelo a bordo; precisamos de ouvi-lo antes de toda e qualquer decisão séria.
O problema não está em avançar; aliás, o problema está em não partir. O busílis reside na imperiosa proibição de descermos um milímetro que seja da nossa condição de pessoas livres, trocada por um prato de lentilhas." - Mário Cabral in Diário Insular

Rio Cacheu, Guiné, LDM 113, 7 de Agosto de 1973

Trinta e oito anos depois, o tempo passou, a dor não.
(na foto: LDM 119, retirada daqui)

sábado, 30 de julho de 2011

Maranatha (78)

IX. CONCLUSÃO

2. SER MODERNO

"Uma pessoa inteligente e culta já não pensa em ser moderna - e se, para além disso, for mundana, quer mesmo é ser conservadora; já não é possível ser moderno e dar nas vistas, os modernos esgotaram a lista dos escândalos possíveis. Está mais "in" ser antigo.
Aliás, foi sempre assim: moderno é o que de mais efémero existe. A corrente pós-moderna explicou a morte deste moderno que ainda esperneia; mas, como a modernice é doença cíclica, procuremos que em Maranatha todos sejam vacinados contra ela.
Identifica-se "moderno" com "actual" e "vivo" - mas, na verdade, o moderno pode significar "reaccionário" e "morte". É o que está a acontecer agora, no Ocidente.
Imaginemos um jardim que deixa de ser cultivado. As ervas daninhas saltam por cima dos arbustos, outrora floridos, e os tanques ou secam ou ficam cobertos de limos verdes e pantanosos.
O que este exemplo procura ilustrar é que a Verdade não depende do tempo, outrossim da atitude. Só um teimoso não compreende as razões clássicas.
Mas um dos cocktails mais perigosos do ser humano é a teimosia aliada ao orgulho: com frequência acontece que alguém, vendo a olhos vistos que se enganou, persiste no erro para não dar parte de fraco.
É o caso dos pós-modernos, inteligentes e cultos de mais para esconderem as contradições iluministas... mas cínicos quanto baste para não afirmarem os pressupostos antigos, perdoados os eventuais excessos circunstanciais.
Toleremos, em Maranatha, que os jovens tenham os seus laivos de modernismo. Fica bem nesta idade. É como ser comunista, é uma questão hormonal. Aproveitemos o ar fresco que possa vir daí.
Mas alerta, não vá o puto trocar a nuvem por Juno.
Nestes casos, voltemos a treinar a noção do ridículo." - Mário Cabral in Diário Insular

sábado, 23 de julho de 2011

Maranatha (77)

IX. CONCLUSÃO

1. MARIA VAI COM AS OUTRAS

"Tudo se corrompe, neste mundo. Maranatha vai tender para o seu fim, como é natural. Mas, porque amamos a nossa cidade, procuremos atrasar a sua queda, através do conhecimento do seu calcanhar de Aquiles.
O maior perigo de todos consiste em não acreditar que Maranatha seja viável, o que é demonstrativo do cancro civilizacional dos nossos dias: cínicos, não acreditamos em nada. "É uma utopia."
Quando se conclui que é inevitável viver do modo como vivemos, nega-se a liberdade que, para além de ser condição fundamental ao Homem, é requisito imprescindível à democracia.
A verdade é que não há destino para a pessoa humana. Somos livres de fazermos de nós o que bem entendermos. Ninguém manda em nós: nem História, nem Economia, nem Biologia.
Este vício fatalista talvez tenha ficado da interpretação marxista, que já deu com a cabeça contra a parede. Não somos obrigados ao desvario capitalista, podemos mudar de vida.
Maranatha é possível. Já foi e voltará a ser.
Para além disso, instalou-se em Portugal este vírus chamado "Maria vai com as outras": os outros é que estão sempre certos, mesmo quando trocam os passos, de bêbados; os outros é que são modernos e vão na crista da onda, mesmo quando se estão a afogar; somos a ultraperiferia - quando é inegável sermos a proa na direcção do novo mundo!
Por fim, talvez que a democracia seja, com efeito, o melhor regime conhecido... mas é o mais débil, o mais fácil de adulterar. "Democratizar" vale mais que "Democracia". Há muitas variantes democráticas. Não podemos ficar reféns desta máscara mentirosa que esconde o rosto do Demónio.
Nem podemos ficar acaçapados, com medo de inventar a excelência, só porque nos dizem "Não venha a pior"." - Mario Cabral in Diário Insular

terça-feira, 19 de julho de 2011

O texto tem 10 anos e será citado nos próximos 100

Os lambe-cus

"Noto com desagrado que se tem desenvolvido muito em Portugal uma modalidade desportiva que julgara ter caído em desuso depois da revolução de Abril. Situa-se na área da ginástica corporal e envolve complexos exercícios contorcionistas em que cada jogador procura, por todos os meios ao seu alcance, correr e prostrar-se de forma a lamber o cu de um jogador mais poderoso do que ele.
Este cu pode ser o cu de um superior hierárquico, de um ministro, de um agente da polícia ou de um artista.
O objectivo do jogo é identificá-los, lambê-los e recolher os respectivos prémios.
Os prémios podem ser em dinheiro, em promoção profissional ou em permuta.
À medida que vai lambendo os cus, vai ascendendo ou descendendo na hierarquia.
Antes do 25 de Abril esta modalidade era mais rudimentar.
Era praticada por amadores, muitos em idade escolar, e conhecida prosaicamente como «engraxanço».
Os chefes de repartição engraxavam os chefes de serviço, os alunos engraxavam os professores, os jornalistas engraxavam os ministros, as
donas de casa engraxavam os médicos da caixa, etc... Mesmo assim, eram raros os portugueses com feitio para passar graxa.
Havia poucos engraxadores. Diga-se porém, em abono da verdade, que os poucos que havia engraxavam imenso.
Nesse tempo, «engraxar» era uma actividade socialmente menosprezada.
O menino que engraxasse a professora tinha de enfrentar depois o escárnio da turma.
O colunista que tecesse um grande elogio ao Presidente do Conselho era ostracizado pelos colegas. Ninguém gostava de um engraxador.
Hoje tudo isso mudou. O engraxanço evoluiu ao ponto de tornar-se irreconhecível. Foi-se subindo na escala de subserviência, dos sapatos até ao cu.
O engraxador foi promovido a lambe-botas e o lambe-botas a lambe-cu.
Não é preciso realçar a diferença, em termos de subordinação hierárquica e flexibilidade de movimentos, entre engraxar uns sapatos e lamber um cu.
Para fazer face à crescente popularidade do desporto, importaram-se dos Estados Unidos, campeão do mundo na modalidade, as regras e os estatutos da American Federation of Ass-licking and Brown-nosing.
Os praticantes portugueses puderam assim esquecer os tempos amadores do engraxanço e aperfeiçoarem-se no desenvolvimento profissional do Culambismo.
(...) Tudo isto teria graça se os culambistas portugueses fossem tão mal tratados e sucedidos como os engraxadores de outrora.
O pior é que a nossa sociedade não só aceita o culambismo como forma prática de subir na vida, como começa a exigi-lo como habilitação profissional.
O culambismo compensa. Sobreviver sem um mínimo de conhecimentos de culambismo é hoje tão difícil como vencer na vida sem saber falar inglês." - Miguel Esteves Cardoso, in "Último Volume"

sábado, 16 de julho de 2011

Maranatha (76)

VIII. RELIGIÃO

10. ALEGRIA NA ESPERANÇA

"As pessoas que não têm religião tendem a perder a esperança. Na verdade, a natureza humana, só por si, não vale grande coisa e, pouco a pouco, à medida que amadurecemos, cresce em nós a desilusão. Quanto mais se é inteligente, quanto mais vai aumentando a angústia face à morte.
Este cenário é catastrófico, em termos políticos, porque reduz a intensidade do empenhamento no bem comum. É certo que há seres humanos capazes de praticar o bem e a justiça mesmo sem acreditarem em Deus e no Juízo Final; porém, é de esperar que a maioria aceite a "luta pela sobrevivência" como a lei natural inevitável.
Os modernos gostam de dizer de si próprios que são a favor do progresso. Esta pretensão não corresponde à verdade. "Progredir" implica avançar em direcção a um objectivo; qual é o objectivo de quem tranca a porta do futuro? As sociedades ateias são claustrofóbicas porque reduzem as pessoas ao fatalismo das leis da natureza. Mais cedo ou mais tarde, a ilusão da novidade tecnológica revela-se um insulto à necessidade humana de infinito.
Ironicamente, é a Tradição que avança a passo certo e seguro para o melhor. Não admira que os crentes sejam pessoas de esperança. Ora, a esperança gera alegria, em especial aquela que foi prometida por Nosso Senhor.
A contrapartida do contrato não pode ser mais vantajosa para o político: "Amar a Deus e ao próximo". Deixa de haver "outros"; passa a haver "irmãos". A compaixão não precisa de leis coercivas.
Alegria é uma coisa, felicidade, outra, e prazer ainda outra: o prazer é físico; a felicidade é um estado psicológico passageiro; a alegria é profundeza de alma. Deveriam andar sempre juntos, daí que os confundamos.
A alegria gera sempre os outros dois." - Mário Cabral in Diário Insular

domingo, 10 de julho de 2011

Maranatha (75)

VIII. RELIGIÃO

9. MINORIA CRIATIVA

"Já fomos a Cristandade; foi no tempo das catedrais e dos reis católicos, quando descobrimos o novo mundo. Não só éramos poderosos como representávamos a civilização.
Íamos a direito, alentados. Quem não estava connosco era pagão, como, antes, quem não era grego era bárbaro.
A Europa actual é a sombra evanescente dum fantasma. Este cancro dura há uns três séculos. Impossível não identificar a modernidade com tal decadência. O cepticismo caracteriza a derrocada.
Maranatha será, conscientemente, uma "minoria criativa" em contexto apocalíptico. O conceito é de Toynbee; e o Papa pediu aos católicos para terem a coragem de voltar a ser o sal do mundo.
A "minoria criativa" é formada pelos que encontram soluções para os desafios; depois, estas são copiadas pelo geral.
Nada que já não tivéssemos experimentado, no tempo de Paulo. Os gregos podres chamaram-no louco. Corinto, hoje, é nome de uva passada, e o louco de Deus continua a ser ouvido em cada missa.
Não tenhamos vergonha de ser "originais", no duplo sentido.
Preparemo-nos: ao nosso gosto estético treinado em palácios vão chamar piroseira; à nossa lógica imbatível, aqueles que não sabem pensar vão contrapor o "cientificamente provado"... vão rir-se dos nossos costumes morais, ter pena de acreditarmos na vida eterna.
"Freud explica", dirão.
Avancemos, gritando: "O rei vai nu!"
Eles: "Reaccionários!"
Nós: "Os cães ladram, a caravana passa."
Poucos, mas geniais. Cavaleiros da tábula redonda.
Quem dera fôssemos todos!
"Vinde a Mim, todos vós que sofreis, e encontrareis descanso."
Digam: "São loucos!", desde que entendam que obedecemos à Transcendência.
Somos filhos de Deus, a Verdade nos alimenta.
Confiemos!
Instauremos, de novo, a apoteose." - Mário Cabral in Diário Insular

domingo, 3 de julho de 2011

O lado da Receita está explicado...

Depois de cerca de 6 anos de trevas, ainda não estou certo se Pedro Passos Coelho está completamente consciente das expectativas que a maioria dos portugueses têm sobre ele e sobre o governo que lidera.
Depois de conhecidos o Memorando assinado com a CE/BCE/FMI e o Programa do Governo, já discutido na AR, já todos conhecemos o lado da Receita do processo de cura de 6 anos de Sócrates em que o pais vai mergulhar.
Também já conhecemos algumas medidas que, embora pouco referidas e ainda não inteiramente explicadas, são um bom sinal do que poderá vir a ser a governação nos próximos 4 anos, e delas destaco apenas duas:
- o regime de IVA com Recibo para pequenas empresa, medida de elementar justiça e mais eficaz para a tesouraria das empresas que qualquer linha de crédito;
- o acesso a subsídio de desemprego para trabalhadores a recibo verde; sendo estes trabalhadores quem mais paga para a Segurança Social, é também de elementar justiça que, quando sem trabalho, possam usufruir do sistema para o qual tanto contribuem.
Falta agora conhecer o lado da Despesa.
E é importante que se conheça depressa, para que os portugueses possam aceitar e compreender por que, e para quê, terão de pagar mais impostos, mesmo que extraordinários, especialmente numa altura em que os serviços do Estado têm tendência a deixar de ser gratuitos.

sábado, 2 de julho de 2011

Maranatha (74)

VIII. RELIGIÃO

8. LASTRO

"À medida que uma pessoa normal amadurece, vai compreendendo o que os pais lhe ensinaram quando criança. Tem a ver com ditados populares, conselhos morais; com referências a contos infantis e à cultura comum.
Este reconhecimento envolve um grande conforto psicológico.
Qualquer religião joga, aqui, um papel central, por ser o campo mais largo.
O Catolicismo é o mais amplo de todos.
As implicações do fundo religioso católico são incontáveis: desde a organização da semana, com o eixo no Domingo, até férias lectivas e feriados, passando pela língua e pelas noções de liberdade, de justiça e de bem, tais pregas são, de tantas, imperceptíveis.
Alguns filósofos chamam a este lastro "jogos de linguagem" ou "quadro de referências". Também se poderia falar de "coordenadas".
Não é possível comunicar sem pressupor, vamos dizer, um estádio comum, onde as regras são as mesmas para todos os jogadores. Uma frase tão simples como: "Até de hoje a oito dias!", implica um acordo de base subentendido.
As regras principais do jogo não podem mudar ao sabor da moda e do capricho individual. Isto acontecendo, a pessoa perde a segurança na realidade e pode adoecer mentalmente.
Os dogmas católicos ultrapassam o tempo e o espaço, trazendo robustez ao carácter. Um açoriano que faça ERASMUS na Polónia sentir-se-á em casa, malgrado as nuances culturais. Saber que no século XXV a liberdade vai continuar um valor traz confiança no futuro.
Igual a isto só a Matemática.
Logo, o contrário é bestial; na verdade, os animais estão encarcerados no seu território e no seu corpo, que morre.
Parecendo que libertam, os modernos prendem a pessoa no desespero da solidão e da loucura.
Para não falar da cidade, que se esfuma." - Mário Cabral in Diário Insular