5. A GULA
5.1. A GULA EM SI
"Um casaco virado do avesso continua a ser um casaco; um demónio virado de pernas para o ar não se transforma em anjo. Assim, a gula é pecado dos mais na moda, embora pareça o contrário. Talvez a obsessão das dietas nunca tenha sido tão medonha como agora, o que está ligado à ideia de beleza, ao desejo e à descrença na vida eterna. Evitar comer não traduz anseio de ascese religiosa ou prática moral, a pensar nos povos de África que passam fome.
Ouve-se vezes sem conta o argumento da saúde; é aceitável que a temperança conduza à sanidade física. Mas o pecado persiste: uma, porque o Estado só convence os tolos com a conversa dos estilos de vida higiénicos, cinismo que encobre interesses económicos, típicos das sociedades que oferecem serviços hospitalares gratuitos; e outra – por certo a mais importante – porque a saúde, em si, não é um bem, e afirmá-lo é ditadura da pior. O discurso actual sobre a comida é uma odiosa escravidão ao corpo.
Uma pessoa come gorduras, bebe à farta, fuma o dia todo e é saudável. Outra tem doenças gravíssimas e come com regra, não bebe e não fuma. A primeira não é, necessariamente, boa; nem a segunda má. A saúde não depende da vontade livre. É uma graça.
Os regimes fascistas privilegiam o físico militar e desportista. Exaltam o corpo jovem, belo, robusto. O oposto deste modelo é desprezado, haja em vista o modo como tratamos os gordos, os feios, os doentes e os velhos. Este é mais um sinal do totalitarismo que tomou conta de nós.
Se tivessem razão, os jovens seriam santos e os velhos belzebus. E viveríamos neste mundo felizes para sempre.
Não terem razão não leva ao asco pelo corpo, que é parte integrante da pessoa e, como tal, digno de respeito." - Mário Cabral in Diário Insular
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