sábado, 29 de agosto de 2009

PECADOS CAPITAIS (30)

5. A GULA

5.6. ARTE CULINÁRIA

"Cozinhar os alimentos é uma das marcas da passagem do estado natural ao estatuto de cultura. É também histórica a pretensão de a culinária se apresentar como arte. Nos últimos tempos, até se fala de “cozinha de autor”.
A expressão é significativa, pois aponta para a evidência de a maior parte das grandes receitas ser anónima. Ora, estamos habituados ao facto de as obras de arte serem assinadas.
Deixarão as receitas incógnitas de ser obras de arte só pelo facto de não serem assinadas? Existem muitas pinturas de autor obscuro, por exemplo as grutas de Lascaux e Altamira.
Outro ponto curioso é este: a obra de arte é uma obra que permanece para ser contemplada. É certo que hoje em dia se fala da arte efémera, mas é uma prática decadente, sem valor futuro.
Os cozinhados comem-se, ou seja: desaparecem, não são contemplados mas ingeridos. Mas quanto ao permanecer, uma sonata também desaparece pelo ouvido adentro – até que outro executante a ponha em prática, de novo, tal como qualquer pessoa pode experimentar uma receita conventual do século XIII.
Quanto à arte pela arte; poderá um prato servir apenas os caprichos estéticos do “cozinheiro autor”? Exemplo: poderá considerar-se bacalhau doce com canela uma obra-prima?
A conclusão é duplamente interessante: primeiro, é inegável que comer é um acto cultural que, por vezes, atinge os picos altos da arte, no sentido em que esta torna sublime a sensibilidade.
Porém, a culinária nunca é arte pela arte, porque o acto de comer é mais radical do que ver e ouvir, no que concerne a sobrevivência. Não se come veneno como se vê pornografia.
Comer é, fundamentalmente, um acto moral, como toda a arte deveria ser.
O belo é a pele, não o caroço.
" - Mário Cabral in Diário Insular

Sem comentários:

Enviar um comentário