6. A IRA
6.1. A IRA EM SI
"A expressão “perder a cabeça” diz tudo: a ira é este sentimento irracional avassalador que passa por cima do raciocínio e da linguagem, transformando o homem civilizado na besta que habitou nas cavernas. A pessoa fica cega e surda, urra, baba-se. Sente o sangue ferver nas têmporas.
Não se deve confundi-la com o ódio; por um lado, ela é pior do que o ódio mas, por outro, é melhor: a ira é intempestiva, passageira, selvagem – o ódio não é alheio à razão e conhece requintes elaboradíssimos e, pois, perversos. O ódio relaciona-se com a vingança e “a vingança serve-se fria”. Pior do que “perder a cabeça” é “perder o coração”, o que acontece à pessoa que odeia.
Parece evidente que o ser racional não deve deixar-se tomar pelos seus instintos mais execrandos, como este que embacia o espelho lógico até nada se ver nele com clareza e distinção. Logo, a ira é claramente um defeito.
Porém, os filósofos modernos permitiram a ira, ao elogiarem as forças inconscientes como determinantes da natureza humana. Ora, “perder a cabeça” sem querer já é mau; mas “querer perder a cabeça” é medonho. O alicerce da cultura moderna é a violência.
Basta ler os clássicos – a começar na “Medeia” e nas “Bacantes” – para saber que desde sempre se conheceu o lago obscuro das paixões que restam em nós. Platão oferece-nos a inesquecível metáfora do cavalo branco e do cavalo negro. Uma das grandes diferenças entre um clássico e um moderno é que aquele assume que a razão deve controlar os desejos e este inverte a ordem do domínio.
A nossa época abriu a torneira do desejo a pensar que de lá sairia água pura. Terrível ingenuidade. Água pura só vem de cima, do espírito, que é um degrau ainda mais alto que a razão." - Mário Cabral in Diário Insular
6.1. A IRA EM SI
"A expressão “perder a cabeça” diz tudo: a ira é este sentimento irracional avassalador que passa por cima do raciocínio e da linguagem, transformando o homem civilizado na besta que habitou nas cavernas. A pessoa fica cega e surda, urra, baba-se. Sente o sangue ferver nas têmporas.
Não se deve confundi-la com o ódio; por um lado, ela é pior do que o ódio mas, por outro, é melhor: a ira é intempestiva, passageira, selvagem – o ódio não é alheio à razão e conhece requintes elaboradíssimos e, pois, perversos. O ódio relaciona-se com a vingança e “a vingança serve-se fria”. Pior do que “perder a cabeça” é “perder o coração”, o que acontece à pessoa que odeia.
Parece evidente que o ser racional não deve deixar-se tomar pelos seus instintos mais execrandos, como este que embacia o espelho lógico até nada se ver nele com clareza e distinção. Logo, a ira é claramente um defeito.
Porém, os filósofos modernos permitiram a ira, ao elogiarem as forças inconscientes como determinantes da natureza humana. Ora, “perder a cabeça” sem querer já é mau; mas “querer perder a cabeça” é medonho. O alicerce da cultura moderna é a violência.
Basta ler os clássicos – a começar na “Medeia” e nas “Bacantes” – para saber que desde sempre se conheceu o lago obscuro das paixões que restam em nós. Platão oferece-nos a inesquecível metáfora do cavalo branco e do cavalo negro. Uma das grandes diferenças entre um clássico e um moderno é que aquele assume que a razão deve controlar os desejos e este inverte a ordem do domínio.
A nossa época abriu a torneira do desejo a pensar que de lá sairia água pura. Terrível ingenuidade. Água pura só vem de cima, do espírito, que é um degrau ainda mais alto que a razão." - Mário Cabral in Diário Insular
Sem comentários:
Enviar um comentário