3.3. SENTIMENTALITE
"A maior das obscenidades desta época é o despudor com que se fala dos sentimentos em público. A perversão atinge a pornografia quando aqueles são rebaixados ao nível das sensações; o verbo é o mesmo “sentir”… mas que diferença vai entre a sensualidade e o ter coração!
Era previsível que a modernidade romântica viesse parar aqui, depois do idealismo ter separado a razão do corpo e o materialismo reduzido o espírito a meras sinapses. Coitado do coração, desde sempre conhecido por sede dos afectos! Abandonado à sua sorte, foi caindo na lamechice das telenovelas mexicanas.
Perdida a unidade da pessoa humana, cada parte separada é indecente, insultuosa, imoral. Sem a razão como rédea bem dirigida, o coração é a casa dos excessos desavergonhados e perigosos: não vale pensar só nas paixões funestas; olhe-se para o ciúme, para o ódio, para a vingança, tão bem retratados na literatura como riscos do bem comum.
Quem é que escolhe entre o amor ou o ódio? Quem é que tempera um e outro? Quem ensina o coração a ter sentimentos é a razão e só ela. Os sentimentos podem derivar de instintos naturais, mas quase nunca atingem o clímax da nobreza sem uma boa formação moral a moldá-los.
O exemplo incontornável é a caridade, sentimento que tem início documentado, que levou séculos a construir e que está a ser destruído paulatinamente, sem que se entenda, por ignorância histórica, o horror bárbaro que virá depois, o mesmo que havia antes dela. Outros sentimentos, também importantes e em ruínas, são: o amor de mãe e o amor à terra, corroídos pelos ataques à família e à pátria.
O coração era assunto privado. Podiam nomeá-lo os grandes poetas. Havia sublimação e catarse. Hoje não se lê poesia." - Mário Cabral in Diário Insular
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